sábado, 15 de dezembro de 2012
VIDA LOUCA
A vida do Sandro começou preta já no nascimento.
Preta e branca, para ser mais justo. E para ser mais preciso, alvinegra. Sandro nasceu torcedor, sem saber.
No quarto da mãe, que descansava de uma cesariana tão inútil quanto precipitada.
O médico obstetra tinha reservado uma pousada no litoral para o fim de semana e não podia arriscar a demora de um parto normal.
Um funcionário da empresa do marido, Edson, já deixara um presente de bem-vindas ao menino: o uniforme completo do time de predileção do pai. Alvinegro.
Um conjunto camisa, calção e meia para quatro anos; detalhe insignificante aos olhos do zeloso funcionário, tanto é verdade que a função dos presentes para recém-nascidos é de agradar os pais antes de apresentar qualquer utilidade para os nenéns.
O colaborador acertara em cheio. O Sandro não tinha como opinar, a jovem mãe não ousava, o pai exultou; de felicidade, com lágrimas nos olhos e o coração na boca, babando de orgulho de ver a nação alvinegra fortalecida do seu mais novo cidadão, Alessandro Ronaldo Torres de Almeida, seu filho! O fato de o uniforme ter sido deixado pelo Edson horas antes do nascimento só podia ser um presságio.
Sandro seria um novo Pelé?
Aos quatro anos, a coisa começou a estremecer entre pai e mãe.
Ela não gostou quando, sem consultá-la, ele matriculou o menino na mais reputada escolinha de futebol da cidade. Desdenhando a reclamação materna. “Quem apita é juiz!” disse sem pestanejar o marido, alviroxo de raiva para a ocasião. “Aqui nessa casa você não apita nada, entendido?” A mãe entendera. Domingo era dia de agonia materna. Fizesse sol fizesse vento, o pai levava o garoto ao estádio. Até que ele ficava bonitinho, carinha de anjo, uniformizado, listrado, tímido. Mas cercado por uma fauna amedrontadora, cambada de machos desmiolados, em habitat de alambrados de ferro e aço, fanáticos, em transe, uivando, pulando, xingando as mães dos outros. Uma torcida.
A mãe do Sandro torcia, de medo, para que nada de ruim acontecesse. Até que um domingo de inverno, o mundo desabou em cima do Pacaembu, na hora do jogo. Trombas d’água nas arquibancadas, arquibanhadas, temperatura polar, para coroar chuva de granizo. Foi a gota d’água. O moleque voltara ensopado, com pneumonia. A mãe pediu divórcio.
Erro funesto. Haviam casado sob o regime de separação de bens. A mãe era do bem, mas não possuía. Ele era dono do patrimônio e o provedor dos recursos. Pagou um advogado dos bons. Apenas saído do leito conjugal, o ex-marido deitou e rolou em cima de sua ex-mulher. Obteve do juiz a guarda do Sandro. A coitada não teve opção a não ser se exilar na periferia, longe do filho, contando o dinheiro do aluguel, da condução, da feira de domingo, contando os dias até poder abraçar o menino, uma vez a cada quinze dias. Aproveitando os domingos, quando o time do pai jogava fora da capital.
Sandro amava sua mãe e idolatrava o pai. Escrevia poemas para ela e se esforçava ao máximo na escolinha de futebol. Morria de medo de desapontar o pai. Levava jeito para a poesia, nenhum para o futebol. Mas era esperto. Percebera que era melhor ser goleiro do que jogador de campo. É que não há vergonha reserva de goleiro ficar no banco o tempo todo. Quando chamado, tem até direito a simpatia de todos e, se as circunstâncias do jogo forem favoráveis, a momentos fugazes de glória. Ao contrário, ai do reserva de jogador de campo que não entra nunca, ou só entra nos acréscimos! Pura vergonha. Sandro tinha pé torto, optou por jogar futebol com as mãos e virou goleiro. No banco de reserva.
Além de esperto, era estudioso. Sabia tudo da história do futebol, de suas regras, dos craques do passado, dos times das séries A e B do brasileirão. O pai só vivia de alvinegro. Sandro vivia de misturar poesia com a peculiar linguística colorida dos clubes de futebol do mundo inteiro: auriverde, alviverde, rubro-negro, canarinho, celeste, reds, bleus, além do sagrado alvinegro do pai, é claro (ou não tão claro?). Aos olhos e ouvidos do adolescente, não eram palavras; eram a expressão da fusão lírica de fonemas e cores, e a lenda dos times por trás de tudo. Em tom de brincadeira, Alessandro Ronaldo repetia que ele era Ronaldo, o fonema.
Sandro nascera torcedor, sem saber, de um time só; a conjunção da puberdade e da poesia o libertou do monopólio alvi-paterno-negro: desabrochara sentindo-se torcedor de todos os times! Ou melhor, de nenhum. De todo modo, uma coisa impensável, que o pai idolatrado embora menos que antes não podia saber. O garoto carregava o segredo, cada vez mais pesado.
Sandro amava a sua mãe, e sofria por ela. Silenciosamente. Não podia sequer falar o nome dela na casa do pai. Poupava metade de sua mesada para levá-la almoçar em alguma cantina italiana uma vez ao mês, ou no cinema, ou para comprar flores, ou para… O jovem havia notado o desaparecimento do “e” na vida da mãe, aos poucos reduzida à ditadura do “ou”; não podia ir ao cinema “e” almoçar em restaurante; comprar um vestido novo “e” dar presente de aniversário ao filho. Podia fazer isso “ou” aquilo, só. Por força das circunstâncias, a mãe do Sandro levava uma vida alternativa, ritmada com “ou”s deprimentes. O filho só não sabia a extensão da vertente alternativa do cotidiano materno.
Acabou descobrindo, por acaso. Indo de surpresa visitá-la numa noite de sábado, aproveitando o fato de o pai ter viajado ao exterior em convenção da empresa. Ela não estava em casa. O porteiro do prédio, meio constrangido meio sacana, entregou a mãe. Indicou um bar movimentado da avenida. Lá estava ela, calça ajustada, decote estudado, sutilmente maquiada. Esperando por clientes. Quando entrou no bar, Sandro avistou sua mãe e entendeu na hora. Um tsunami de emoções irrompeu na cabeça do jovem: ódio do pai, vergonha do pai, compaixão para com a mãe e, sim, orgulho dela. Encostada na parede da quase miséria pelo ex-marido, ela usara do recurso último para não entregar os pontos. Fazia ponto. Ela agora estava ocupada, conversando com um possível freguês, e não vira seu filho entrar. Sandro saiu discretamente e voltou para casa, ela nunca saberia que ele a tinha flagrado.
No caminho de volta, tomou a decisão mais importante de sua vida. Assumiria na íntegra sua condição, como profissão. Na segunda-feira seguinte se matriculou para o curso de habilitação e começou a estudar imediatamente. Em segredo do pai.
Dia quinze de janeiro, domingo de sol e o Pacaembu lotado. A primeira rodada do Paulistão. Começa com um clássico: alvinegro contra alviverde.
Tensão no gramado, carnaval nas arquibancadas.
Aos sete minutos do primeiro tempo, um atacante alviverde desaba na área alvinegra.
O juiz aponta o círculo branco e solitário no meio da área: pênalti! Nem hesitou não era de hesitar.
O braço direito estendido com vigor para o ponto de castigo. Não recua sob a onda de jogadores alvinegros revoltados, os encara com firmeza, encena dar cartão amarelo a quem insistir, acalma a todos, monitora a cobrança.
Um terço do estádio canta, o resto, o imenso resto, berra, trepida, xinga:
“Filho da p…! Filho da p…! Filho da p…!”.
Mais de trinta mil bocas soltando sua fúria.
“Filho da p…! Filho da p…! Filho da p…!”.
A ofensa desliza, brisa leve, até o coração do juiz, agradecido.
Um sorriso no canto dos lábios, o jovem juiz Alessandro Ronaldo Torres de Almeida, mais tarde conhecido como Ronaldo, o fonema, volta para o círculo central, carregando a bola, feliz.
“Filho da p…! Filho da p…! Filho da p…!”, canta a multidão.
“Com muito orgulho!”, responde por dentro o Sandro.
“Com muito orgulho!”
*Jean-Michel Lartigue é autor do livro de contos “EQUÍVOCO”, pela edições ardotempo. O conto acima é um dos 39 de seu livro, lançado há pouco. Veja aqui.
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