sexta-feira, 2 de setembro de 2011
A morte da São Silvestre
A São Silvestre morreu. A prova de rua mais tradicional das Américas perdeu o último charme que existia e que ajudou a fazer dela o maior fenômeno das corridas de rua das Américas antes mesmo de o esporte ser a potência que é hoje.
A decisão da Yescom, organizadora da prova, de tirar a chegada da corrida da Avenida Paulista foi o maior tiro no pé da competição desde que ela já havia deixado de ser disputada à noite. Na época, porém, a justificativa era aceitável. A corrida noturna comprometia a logística da festa de Reveillón em São Paulo e afastava atletas de ponta bem como a transmissão pela TV. Em troca desses benefícios, mudou-se a largada para o período da tarde, com uma multidão de pessoas e TV Globo ao vivo. Se não era mais tão charmosa, pelo menos a prova continuava a ser o “gran finale” de ano para muitos dos corredores.
Mas agora aquilo que sempre se ensaiava, mas nunca se fazia, aconteceu. No final do ano passado, conversando com Thadeus Kassabian, dono da Yescom, ele falou que estava cada vez mais convencido de que a solução seria tirar a chegada da Avenida Paulista. A mudança era o caminho encontrado por ele para adequar os mais de 20 mil corredores, que se aglomeravam pós-prova com o público que chegava para a festa noturna na Paulista.
Achei que, mais uma vez, aquele projeto sem o menor sentido não fosse vingar. Afinal, um dos grandes baratos (se não o maior) da prova era terminar a subida da Brigadeiro e apontar na avenida Paulista para cruzar a linha de chegada em frente ao prédio da Gazeta, criadora da prova, lá nos anos 30. Sempre foi assim, não tinha sentido deixar de ser.
A maior preocupação da Yescom era com o conforto do seu corredor, cansou de argumentar Thadeus durante o almoço em que foi bombardeado pela imprensa por outra medida que havia sido adotada na edição de 2010.
A Yescom criou a absurda premiação pré-prova. O corredor já ganhava a medalha de participação ao retirar o kit para a corrida de 2010!!!! O motivo?
“Segurança e conforto do corredor”, nas palavras de Thadeus.
A decisão já mostrava uma tacanha visão de gerenciamento de eventos do organizador. Em vez de criar o conceito de que a prova dele é o que há de mais legal no esporte (e, com isso, o corredor não se preocupe em pagar mais pelo produto), a organização tenta ganhar na margem de inscritos, e não na qualidade da prova. Confunde-se o grande volume de participantes com sinônimo sucesso de evento. A tal da “segurança” vira a desculpa para não dizer o básico. “Não quero diminuir a minha margem de lucro ao reduzir o número de participantes e dar a eles o melhor tratamento para uma corrida”.
No acordo em que faz com a Globo para a realização da São Silvestre, a Yescom fica com a receita das inscrições de atletas e com a venda de cotas menores de patrocínio. Em busca do aumento da receita, a empresa tenta colocar o maior número possível de participantes. Há, claro, um limite nas inscrições. Atualmente são 21 mil inscritos para a corrida. A ideia original era tentar mover o palco do Reveillón na Paulista e ampliar a São Silvestre para 30 mil inscritos, mantendo-se o percurso original.
Com a falta de sucesso da empreitada de mudança do Reveillón, a decisão foi adotar o caminho mais simples: deixar a tradicional linha de chegada de lado e partir para um novo trajeto. Isso significa, na visão da Yescom, mais gente na prova e mais dinheiro no bolso. É a aplicação de um conceito absolutamente torto do que representa a satisfação do cliente e, mais do que isso, da valorização do evento.
E olha que não é falta de conhecimento do que é organizar evento de corrida de rua. A Yescom organiza algumas das principais provas da modalidade no país. Volta da Pampulha, Meia Maratona do Rio de Janeiro, Maratona de São Paulo…
O que parece, porém, é que a empresa preocupa-se muito mais com o resultado financeiro da prova em detrimento do grau de satisfação do corredor. Tanto que, em todas essas outras provas, ela criou uma “Inscrição VIP”. O atleta amador que pagar um valor quase cinco vezes maior do que a inscrição normal pode largar sem ser com o “povão”, partindo junto com os principais atletas e tendo o benefício de não ter de dividir a pista com muita gente, o que atrapalha a velocidade da prova. É como se fosse criada uma rua pedagiada e com menos trânsito para quem, desde que tenha dinheiro, não deseje sofrer com o excesso de carros.
A satisfação do cliente só serve para o caso de ele ter dinheiro…
Era muito simples resolver o problema da São Silvestre. Aumentava-se o valor da inscrição, diminuia-se o número de inscritos e criava-se toda uma expectativa nas pessoas de garantir o tão desejado lugar na prova de rua mais tradicional da América do Sul. Com isso, tem menos gente e um melhor serviço para o corredor que conseguir mais rapidamente adquirir a sua vaga na prova.
Isso não significa tornar a corrida elitista, mas simplesmente aplicar o conceito de oferta e procura que rege o mercado capitalista. Para conseguir a vaga, tem de chegar antes.
É assim que fazem as grandes maratonas do mundo, como Boston e Nova York, mais antigas e tradicionais e que resistiram ao crescimento do mercado de corridas fazendo de suas provas as mais cobiçadas do mundo. Há fila de espera de gente interessada em pegar um lugar para correr em Nova York. Em Boston, é preciso índice técnico para competir.
A São Silvestre conseguia reunir excelentes qualidades daquilo que há de mais difícil para um evento esportivo. Tradição, data fixa de realização (o que permite a organizadores e atletas fazer todo um planejamento), cobertura de mídia e ser um objeto de desejo do consumidor.
Prova de rua existe mais de uma a cada final de semana ou feriado na cidade de São Paulo. Mas nenhuma é A São Silvestre. Aquela que fecha o ano, que encerra um ciclo, que representa uma conquista pessoal para o corredor.
Por tudo isso, é fácil você organizar a prova com 15 mil pessoas pagando o dobro do que é pago hoje pela inscrição. Haverá fila de espera, vai ter gente desesperada para comprar o direito de participar dessa prova, o organizador conseguirá entregar um produto melhor, assim como a televisão, e o corredor sem dúvida se sentirá mais privilegiado em participar de um evento que começa a ser “restrito”.
Um dos maiores segredos do negócio no esporte é saber preservar a tradição dos tempos em que o dinheiro não importava tanto para o evento acontecer. Isso faz com que a competição seja ainda mais desejada e, consequentemente, ainda mais cobiçada por público, mídia e patrocinadores.
Mas a São Silvestre morreu. A tradição que fazia dela um dos maiores objetos de desejo do corredor foi sepultada. Resta saber se a organização vai perceber que, às vezes, ter menos é conseguir mais.
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